Erico Vasconcelos [A] Diretor-Fundador da UniverSaúde
“Até quando a inteligência dos maus seguirá mais poderosa que a inteligência dos bons?”, perguntou o nobre e saudoso educador brasileiro Rubem Alves em setembro/2005 em um artigo na Folha de São Paulo [1]. Lembro de estar ministrando um curso introdutório para equipes de Saúde da Família do município de Mauá-SP à época quando o citei. O tema era compaixão e eu estava fascinado com o quanto Rubem Alves conseguia tão elegantemente traduzir pro papel as conexões entre os fatos que vivera com o conceito. Quando preparava a aula eu sentia na pele o desafio de transmitir o que sentia para os meus “alunos” – de fato Colegas queridos que ora se dedicavam para aprender e ensinar sobre a Atenção Básica no SUS.
Eu já tinha sentido a compaixão na pele como Cirurgião-Dentista na Estratégia Saúde da Família. O ano era 2001 e eu estava em Sobral-CE numa das primeiras Residências Multiprofissionais sobre este tema do País trabalhando no distrito de Aprazível, distante 30km de lá, quando fiz um diagnóstico tardio de câncer de boca em um Senhor com 72 anos. Fora de possibilidades terapêuticas e na iminência da sua finitude humana, aquele Senhor sofria com dores que doíam em nós todos da equipe. Ele resistia à internação, fazíamos de tudo para dignamente atenuá-las ali na Unidade ou em seu domicílio, mas era muito difícil manejá-la tamanha a extensão, gravidade e repercussão da doença.
Quando ele faleceu sentimos como se tivesse ido algo de nós. Lembro de ter dito para a sua família e para a nossa equipe que aquele Senhor tinha nos deixado aprendizados que repercutiriam para a Saúde de toda a Sociedade local. Isso me tocou tanto que tomei pra mim o desafio da prevenção e diagnóstico precoce do câncer de boca no Brasil a ponto de desejar me aprofundar no tema tentando acesso ao Mestrado no melhor curso do País na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Este ano em setembro fará 15 anos que eu o concluí e até hoje sigo dedicado a esta agenda tão relevante e complexa e que afeta grandemente a saúde pública do nosso País.
“Do que vale o conhecimento sem compaixão?”, perguntaria Rubem Alves neste mesmo artigo que citei aqui no início. Tanta gente sabida, com tanto conteúdo, tão inteligente, mas insensíveis e inábeis como humanos. “A falta de compaixão é uma perturbação do olhar”, Rubem Alves insiste. E com ele vou concordando, me conectando sobre a importância da compaixão nas relações entre as pessoas e sentindo tristeza ao contrapor com o momento que vivo hoje 16 anos após seus registros. No Brasil de hoje, 12 meses após a decretação da pandemia, já se foram mais de 275 mil pessoas queridas de outros tantos, que partiram com dor, sofrimento, sem oxigênio..
Tá tudo errado, é impressionante! Pra gente que é ser humano na essência, que não perdeu a capacidade de se indignar e que sente na alma a dor de uma Nação sem rumo, que ainda ignora as orientações de cuidado e distanciamento e perde sua gente amada num senso de naturalidade irracional, o incômodo e peso no peito são indescritíveis.
Quando me pego lembrando da minha atuação como gestor do SUS e de outras organizações de saúde, de ter sido profissional de saúde da linha de frente e que agora acompanha de perto o que acontece lá por meio de familiares e amigos que se estraçalham de tanto trabalhar e que se afetam emocionalmente com o que enfrentam, a dor e afetação são inevitáveis. Principalmente quando o olhar sobre as evidências do momento atual nos faz crer em um cenário ainda mais pessimista por diante, de que tudo isso ainda vai nos conduzir para tempos ainda mais delicados.
Enquanto isso, no país do “perde-perde” e em completo estado de normose, tudo segue silencioso e sereno. Seguimos sem liderança e articulação interfederativa para o combate à pandemia, sem vacinas suficientes para todos e operando agora na lógica do “salve-se quem puder”, do “meu pirão primeiro” em busca da tão sonhada vacinação que não seguirá mais um calendário nacional via Programa Nacional de Imunização, acentuando assim as iniquidades e as desigualdades tão tradicionais por aqui e que já fazem parte também do cotidiano de muitos que já nem ligam mais para os desafortunados e desprivilegiados.
O quê será deste “país do futuro” que não se desconforta, não se mobiliza e não constrói “pontes para conectar as ilhas” ninguém sabe exatamente. Ou melhor, talvez saibamos muito bem, não é? Compaixão sabe lá onde foi parar, por onde anda. Perdemos para nós mesmos e isso é muito triste. E perder pra si mesmo é como se despedir de si. Eu derrotado. Eu perdedor. Eu como um ser inanimado, objeto de manipulação de terceiros. A verdadeira desconexão com o real sentido da vida..
O que mais pega pra mim neste sentido não é exatamente a repercussão disto apenas para o agora especificamente, mas as suas consequências para a geração que virá. A geração dos filhos que deixaremos para o mundo. Precisamos urgentemente nos conectar com a noção de legado para que consigamos sair desta. Temos que tecer redes para cuidar e proteger. Buscar conexões que façam sentido com aqueles que compreendem na essência a relevância disto que estamos metidos.
Creio que temos desafios bons por trás disso tudo. Ainda enxergo sim. Nosso País, bem como outras Nações por aí afora, sempre funcionou e evoluiu em função destas pressões que o tiram do prumo e o questionam. Cenas dos próximos capítulos. Mas a visão de momento que projeto é a de que teremos que nos esforçar bastante para nos salvar. E a sobrevivência neste instante se conecta com a perspectiva do isolamento.
Referência:
[1] ALVES, R. “Meu coração fica com o coração dela”. Sabor do saber. Jornal Folha de São Paulo. 27/09/2005. Acesso em 12/03/2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/sinapse/sa2709200515.htm
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[A] Erico Vasconcelos é cirurgião-dentista, estomatologista, especialista em Terapia Comunitária, em liderança e desenvolvimento gerencial de organizações de saúde e com MBA em gestão de pessoas. Há 15 anos atua na gestão da Atenção Básica, do SUS, na Segurança e Qualidade e na Gestão Estratégica de Pessoas. Foi gestor de saúde de diversas organizações privadas e municípios. Atuou no Ministério da Saúde entre 2013 e 2016 no Departamento de Atenção Básica elaborando políticas e desenvolvendo ações de apoio e educação. Desde 2005 atua na formação em serviço de gestores e profissionais de saúde pelo Brasil afora. Trabalhou como Tutor e Coordenador de Cursos na EaD da ENSP, UnASUS-UNIFESP e na UFF. Foi Professor de Saúde Coletiva da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e em outros cursos de várias Universidades. Fundou a UniverSaúde em 2016, uma startup que ajuda pessoas e organizações a conquistarem mais Saúde integrando gestão, educação e tecnologias Já trabalhou em mais 40 municípios e organizações. Cursa atualmente a pós-graduação do Master de Liderança e Gestão (MLG) do Centro de Liderança Pública (CLP).
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