O SUS não precisa de "choque de gestão", mas de uma "nova agenda político-gestora"
- ericovasconcelos4
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Erico Vasconcelos [A]

O Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior sistema público de saúde do mundo com acesso universal e integral. Há muito enfrenta pressões crescentes por melhorias na eficiência e nos resultados assistenciais. O discurso do "choque de gestão" para o SUS, como o apresentado no editorial do jornal O Globo de 16/06/2025 [1], inspirado em fórmulas empresariais e tecnocráticas, frequentemente desconsidera a sua complexidade federativa, social e institucional. A pergunta que surge é: seria mesmo esta a verdadeira "saída" para a superação das dificuldades que a Saúde Pública enfrenta, a considerar a conquista de mais eficiência e sustentabilidade gestora?
Desde sua criação em 1988 com a promulgação da Constituição Federal, o SUS tem sido uma das maiores expressões do pacto civilizatório brasileiro ao garantir o direito universal, equânime e integral à saúde. Construído sobre os escombros de um sistema excludente, segmentado e centrado na filantropia e no mercado, o SUS representou a institucionalização de um novo paradigma: o da saúde como direito e da gestão como responsabilidade do Estado em todas as suas esferas.
O caminho percorrido em favor da consolidação do SUS nestes quase 40 anos tem sido repleto de tensões entre o projeto constitucional e a realidade da sua implementação. Sob o peso do subfinanciamento crônico, da fragmentação das políticas públicas, da descontinuidade administrativa, do déficit de planejamento e da carência de quadros técnicos especializados, muitas administrações recorrem à ideia de “choque de gestão” como uma solução mágica e emergencial para “arrumar a casa”.
Essa expressão "choque de gestão", embora atraente e sedutora aos olhos do leigo, tem sido frequentemente invocada em momentos de crise administrativa como promessa de solução rápida e tecnocrática. Tem base em abordagens neoliberais inspiradas na gestão privada e em experiências internacionais de ajuste fiscal e reengenharia do Estado. Sua aplicação indiscriminada no SUS, entretanto, revela-se ineficaz — e até mesmo prejudicial — por ignorar o contexto histórico e estrutural dos projetos de poder de caráter político-partidário, a dinâmica interfederativa, o papel do controle social, as demandas do território e os princípios constitucionais do sistema de saúde brasileiro.
Cabe sobressaltar que o SUS não é uma empresa. É um sistema de saúde público, por princípio universal, equânime e integral, tripartite, com responsabilidades compartilhadas e ações interdependentes entre os entes federativos. Um “choque de gestão” que não compreende essas camadas políticas, administrativas e territoriais termina gerando medidas autoritárias, desconectadas da realidade e com baixa sustentabilidade institucional. Ao mesmo tempo, muitas propostas de "choque" apostam em cortar gastos e aumentar produtividade, mas ignoram as inequidades estruturais do Brasil. Buscar eficiência sem considerar as desigualdades territoriais, raciais, de acesso e de infraestrutura é reforçar a exclusão social — e negar o próprio espírito do SUS.
Mais do que um suposto "choque", o que o SUS precisa é de uma nova agenda político-gestora ancorada em um debate que se paute minimamente pelo senso de responsabilidade sanitária e solidária entre os tomadores de decisão em favor do fortalecimento da governança institucional e da recriação das relações e circunstâncias que atravessam o cotidiano político-gestor do SUS. É uma proposta que reconhece a sua complexidade naturalmente, mas aposta na inteligência coletiva e na capacidade de reconstruir a confiança pública em nossa política de saúde pública.
O SUS não carece de rupturas improvisadas, mas de continuidade qualificada. A nova agenda político-gestora aqui proposta representa uma alternativa sólida ao discurso fácil do "choque de gestão", articulando técnica, política, compromisso federativo e participação social. Não se trata de reinventar o SUS, mas de reconstruir sua capacidade de governar com inteligência, eficiência e humanidade.
Referências:
[1] SUS precisa passar por choque de gestão. Jornal O Globo. Editorial. Publicado em: 16/06/2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2025/06/sus-precisa-passar-por-choque-de-gestao.ghtml?giftId=080bfad564c65e3&utm_source=Copiarlink&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilharmateria
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[A] Erico Vasconcelos é cirurgião-dentista, estomatologista, especialista em Terapia Comunitária, em liderança e desenvolvimento gerencial de organizações de saúde e com MBA em gestão de pessoas. Há 19 anos atua na gestão da Atenção Básica, do SUS, na Segurança e Qualidade e na Gestão Estratégica de Pessoas de organizações de saúde. Foi gestor de diversas organizações privadas e municípios. Atuou no Ministério da Saúde entre 2013 e 2016 no Departamento de Atenção Básica elaborando políticas e desenvolvendo ações de apoio e educação. Desde 2005 atua na formação em serviço de gestores e profissionais de saúde pelo Brasil afora. Trabalhou como Tutor e Coordenador de Cursos na EaD da ENSP, UnASUS-UNIFESP e na UFF. Foi Professor de Saúde Coletiva da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e em outros cursos de várias Universidades. Fundou a UniverSaúde em 2016, uma empresa que ajuda gestores a reduzirem custos e a captarem novos recursos com resultados rápidos, fortalecendo a governança e promovendo a sustentabilidade financeira e organizacional da Saúde. Atualmente trabalha como Tutor do HCor em uma iniciativa do PROADI-SUS/Ministério da Saúde e desenvolve parceria com a empresa de tecnologia OM 30 de São Paulo-SP.
Concordo plenamente, Erico !
Decorridos 35 anos da promulgação da lei que o criou com base nos preceitos da Constituição "Cidadã", o SUS avançou muito. Muito mesmo. Basta compararmos com o pouco ou quase nada que tínhamos antes dele, como você pontuou em seu ótimo artigo.
Para o SUS continuar avançando em meio a tantos desafios e tamanha complexidade, inerentes à realidade brasileira, a palavra-chave não é "revolução", mas sim "evolução" - processo de agregar valor sobre o que já tem, melhoria contínua. Com base em programas permanentes de Estado, visão sistêmica e foco no bem-estar dos cidadãos.
O país tem tudo para levar o SUS a se tornar, na próxima década, não só o maior mas também o melhor…